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Este Blog reúne algumas expressões das mais simples e complexas razões de existir. Sintam-se bem!

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A GAROTA QUE NÃO TINHA HISTÓRA

Era comum, mesmo durante o auge do verão, que algumas noites fossem surpreendidas por um vento tranquilo e uma chuva sinfônica. A somatória disso era um frescor perfeito para uma boa taça de vinho, daquelas, das vastas produções de Mendonza. Não resisti! Enchi, vagarosamente, uma taça velha, vazia de histórias e, sentei-me para respirar, enquanto ouvia o compositor italiano que me ensinou a fechar os olhos e ver cores e formas em nuvens brancas.

Não passou muito tempo e me vieram à mente alguns escritos, lidos há pouco tempo, sobre abandonos, retrovisores, voltas e não voltas, ondas, mar... Eram grandes reflexões sobre tudo que a vida pode oferecer, que me balançavam de uma maneira considerável. Em meio a este cenário, lembrei-me também de um pequeno conto que havia lido ainda quando adolescente. Era sobre uma comunidade de pessoas que tinham os cabelos de fogo. Minha imaginação percorreu cada sorriso daquelas pessoas surpreendentes, até que mirou e parou em uma moça, que eu já não sei se fazia parte daquela história ou se me foi uma feliz invenção.

Pois bem! O mundo construído em torno daquela figura ampliou-se rapidamente. Como não posso descrevê-la com tamanha precisão, diante do que foram meus pensamentos, usarei um trecho dos escritos que li há pouco. Assim, sobre a moça de cabelo de fogo, eu diria com tamanha e tal precisão, que invejo, sem culpa, que alguém já tenha escrito tais frases, pois adoraria, de tal forma, ser o autor.

“Ela vestia um vestido azul de cetim e seus cabelos de fogo brilhavam sob o sol da primavera. Olhou para mim e então sorriu, com toda graça e amor do mundo. Seus olhos focavam os meus, olhos intensos, mas que me traziam a serenidade. Desconcertante, ela era indescritível.

[...] E eu tentei, de todas as formas. Mas ela sempre fugia, sempre ia embora, e eu ficava a mercê do comum, sobrevivendo apenas de sonhos, até que ela voltasse pra mim. Eu me acostumei a não tê-la para mim, entendi que meu anjo de fogo tinha asas invisíveis para ir e vir quando quisesse. Mas nunca me acostumei as suas partidas tristonhas, nem aos delírios que a sua volta trazia. Ela aquecia meu coração, alegrava minha alma.”

Revesti-me de uma autoria plagiada e viajei naqueles olhos que, talvez, nunca existiram, nem mesmo nas páginas, imaginadas por alguém, que eu havia lido. Ri alto das surpreendentes frases que ela era capaz de elaborar ao pé do ouvido, com sua voz doce e forte ao mesmo tempo! Seu sorriso enigmático não era apenas um convite, era a fonte! Seu abraço era o frio no verão e o calor no inverno, para quem o recebesse.

E eu, que brincava de ver desenho em nuvens, me contentava com todas essas imagens à distância, sem nunca ter a perspectiva de provar, pessoalmente, todas essas, e muito mais, qualidades daquela moça que eu não sabia se existia.

A realidade e a imaginação estavam divididas por uma linha sensível. Talvez fosse o efeito do vinho! Talvez o dia cansativo que tive! Suava frio e voltava para aqueles cenários que vivi, ou não!

Em um desses lampejos, ela me encontrou. Eis que, em meio a um pulso da complementaridade moderna, estávamos frente a frente! Ouvíamos a mesma música e sentíamos em nossos rostos a mesma brisa leve! Tudo nela me aquecia. Seus cabelos me iluminavam. O irreal, real! Real?

Voamos em uma dança! Viajamos em uma canção e poema! Paramos o tempo em um olhar, seguido de um beijo, que mais parecia uma profunda troca do que éramos, somos e seremos! Sem juízo, sem preguiça, sem desconforto, sem cobrança, sem tragédia...

Passamos, talvez, duas, três ou quatro eternidades, conectados a sensação de não pertencer a nada, nem a ninguém. Pertencíamos somente àqueles instantes, reais ou não!

Em um pequeno lapso humano de querer permanecer naquele abraço, perguntei a moça seu nome, de onde vinha e para onde ia. Ela apenas sorriu, respirou fundo, contou-me todas as histórias de “alguéns” que já haviam lhe inventado e provado, bem como, de “alguéns” a quem ela provou e inventou! Invenções reais, naquela irrealidade eterna, intensa e, ao mesmo tempo, passageira.

Com tantas histórias jogadas na parede da memória, faltou-me apenas a sua. O vinho acabou! A música parou! A noite fez-se dia! E eu, estava só, com algumas páginas que acabara de ler. Todas em branco! Nem uma única palavra, letra, ponto ou vírgula. Restou-me apenas aquele sorriso indecifrável e distante, tal qual “A Gioconda”, pendurada em uma parede importante pelo mundo.

Naquela noite, eu, um contador de histórias, experienciei a companhia de uma garota que não tinha História!

 

Tom Apolinário

Enófilo, em noites solitárias

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